Hospital mudou protocolo de aborto legal após caso de 2020 – 12/08/2025 – Equilíbrio e Saúde
Na parede do serviço de aborto legal do Hucam (Hospital Universitário Cassiano Ântonio Moraes), em Vitória, um cartaz da Secretaria Estadual de Saúde do Espírito Santo explica o passo a passo do atendimento em caso de gravidez resultante de violência sexual. E é taxativo: a interrupção pode ser feita até as 22 semanas. Depois disso, o direcionamento é para o pré-natal.
Está desatualizado, explica uma funcionária à Folha durante visita ao Pavivis (Programa de Atendimento à Vítimas de Violência Sexual) do Hucam, em maio de 2025. Há anos o protocolo do hospital é outro, e estabelece que as mulheres e meninas grávidas que chegam ali para interromper gestações acima de 22 semanas sejam encaminhadas para outro serviço, fora do estado, que realiza o aborto legal.
O estopim da mudança completa cinco anos neste mês: a história de uma menina capixaba de 10 anos estuprada pelo tio e grávida de 22 semanas.
O caso, que ganhou notoriedade nacional à época, se tornou um marco da discussão de direitos reprodutivos no Brasil, inspirando ações de grupos feministas e uma ofensiva anti-aborto no Legislativo e em entidades como o CFM (Conselho Federal de Medicina).
Ele também causou alterações no atendimento ao aborto legal no Brasil em hospitais do país todo —incluindo no Pavivis, um dos serviços no centro da história. Desde 2020, 26 gestantes foram encaminhadas para interromperem a gestação em outras partes do país, segundo a administração do hospital.
“Depois de 2020, a legislação continua a mesma, mas o entendimento da sociedade civil é outro. Desde então, a gente faz os encaminhamentos para o Estado, que aí vai encaminhar para algum outro serviço que possa atender essa demanda da paciente”, diz a assistente social Alexsandra Martins, funcionária do Pavivis.
A Folha publica neste mês uma série de reportagens sobre o caso da menina do Espírito Santo e as repercussões dele no país.
A menina chegou ao Pavivis em 14 de agosto de 2020. Ela vinha de São Mateus, no norte do estado, e tinha ficado grávida após ser estuprada por um tio. A chegada da criança a Vitória já era o desfecho de um processo turbulento: durante uma semana, ela permaneceu em um abrigo para menores de idade, enquanto se disputava seu destino.
Como a Folha revelou em 2020, a então ministra Damares Alves, titular da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos no governo Jair Bolsonaro, tinha atuado pessoalmente para evitar que a criança tivesse acesso ao aborto legal.
Damares chegou a enviar quatro funcionários do ministério para a cidade, onde eles fizeram reuniões com conselheiros tutelares e outras autoridades do poder público municipal. A parte mais conhecida das negociações envolvia o “kit Renegade”, uma oferta dos enviados da ministra doar carros do modelo Jeep Renegade ao Conselho Tutelar, entre outras melhorias. Damares nega que as reuniões em São Mateus tivessem o objetivo de impedir a menina de abortar.
Somente uma semana depois da descoberta da gravidez, uma decisão judicial da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus autorizou o aborto legal, e ordenou a sua realização imediata. A menina foi transferida de carro para Vitória, onde deu entrada no Pavivis.
No entanto, por causa da semana em que permaneceu abrigada, a criança apresentou idade gestacional de 22 semanas e quatro dias quando examinada. O hospital negou o atendimento.
A criança conseguiu abortar no Recife, no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, após interferência direta do então secretário estadual de Saúde, Nésio Fernandes, do Ministério Público capixaba e de ativistas feministas que acompanhavam o caso.
O Código Penal brasileiro não estabelece limitação de idade gestacional para interrupção de gravidezes fruto de estupro, quando há risco de vida para quem gesta e em caso de anencefalia fetal. No entanto, em 2020 havia documentos infralegais que citavam o limite de 22 semanas ou 500g do feto.
O próprio diagrama que ainda resiste na parede do Pavivis, elaborado pela Secretaria Estadual de Saúde, orienta a interrupção até essa idade. No entanto, essa intepretação é disputada.
Os defensores do direito à interrupção afirmam que portarias e outras diretrizes não têm força legal se sobrepor ao Código Penal. Essa foi a interpretação adotada também pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Alexandre de Moraes em decisão de 2024, quando suspendeu os efeitos de uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina), que impedia médicos de realizarem a assistolia fetal.
A assistolia é um procedimento médico recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em gestações mais avançadas, para o aborto legal. O ministro afirma na decisão que não há, na lei brasileira, limites temporais para a interrupção dentro dos permissivos legais.
Mas não foi apenas no Pavivis que o entendimento mudou apenas a partir do caso de 2020. Outros profissionais de diversos estados com quem a Folha conversou em condição de anonimato por medo de represálias afirmam que só passaram a realizar a interrupção em gestações avançadas naquele momento.
No hospital de Vitória, outra mudança é atribuída à menina de 10 anos: o número de mulheres e meninas que chegam ao serviço informadas sobre a possibilidade de interromper a gestação também aumentou em cinco anos.
Apesar disso, o acesso ao aborto legal acima de 22 semanas ainda é muito precário no Brasil. No Espírito Santo, nenhum dos serviços realiza a interrupção acima deste prazo. Segundo pessoas ouvidas pela Folha com conhecimento interno do serviço, o serviço montado no Himaba (Hospital Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves), em Vila Velha, após o caso de São Mateus, chegou a realizar o procedimento, mas não o faz desde 2021.
Atualmente, o hospital encaminha os casos para outros estados, como Minas Gerais —onde funciona o Nuavidas, serviço de referência dentro do Hospital Universitário da Universidade Federal de Uberlândia.
A Folha tentou entrar em contato com a secretaria estadual de Saúde do Espírito Santo, mas não obteve resposta. O Hucam afirma não realizar a interrupção por falta de capacidade técnica.
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